A mágoa é parecida com o ressentimento. Pertencem à mesma família. Ficamos magoados com as pessoas quando somos rejeitados ou simplesmente colocados em plano secundário. Dificilmente ficamos magoados pela desconsideração de pessoas estranhas. São os íntimos que mais nos magoam, quando lhes falta a ternura e a paciência que esperamos. Às vezes nem se dão conta de que nos magoaram. Não percebem. Passado o episódio que nos deixou entristecidos voltam a nos tratar da forma como sempre o fizeram. Não sentiram a extensão do nosso incômodo. Quase sempre de nada adianta -- se oportunidade houver – expor o nosso desapontamento e, mais que isso, a nossa dor. Não conseguem, mesmo em nome da intimidade da convivência, identificar a resultante da atitude que nos deixou abatidos.
O fato é que a mágoa permanece, não raras vezes, por um bom (ou mau) tempo. E é o mesmo tempo que, na sua bondade, se encarrega de esmaecê-la até quase ao desaparecimento. Com um pouco de boa vontade, chega mesmo a não mais existir. Aí estamos prontos a sorrir de novo, descontrair o cenho inconscientemente tenso, como que não querendo expulsar da mente o que nos magoou para não ferir o outro por quem temos tanto apreço.
A mágoa faz adoecer porque inibe o fluxo dos hormônios da vida. Não podemos viver bem sem os nutrientes do respeito, da paciência, da ternura. Enfim, dos cuidados que os nossos momentos peculiares de desenvolvimento exigem. Não podemos esquecer a importância desses “momentos de desenvolvimento”. A questão é que nem sempre os outros os percebem; e aí nos magoam. Raramente sabemos o porquê de tal comportamento.
Se não podemos evitar que os outros nos magoem, podemos, pelo menos, tentar reduzir ao mínimo seus efeitos ou, até mesmo, não nos deixar atingir pela persistência da dor que provocam. A mágoa danifica, corrói, desvitaliza.
Há, entretanto, outra forma de magoar as pessoas. Certamente haverá muitas outras. Não sei se esse conceito de magoar é universal. Francamente, não sei. Só sei que desde a meninice ouvia dos adultos que existe uma outra maneira de magoar os outros e a nós mesmos. É algo mais concreto e objetivo do que a mágoa que se assemelha ao ressentimento, embora, ao final, no seu sentido figurado, produzirá a mesma dor da alma.
Quem de nós não lembra de um ferimento que, descuidadamente, é atingido por um objeto ou, o que é pior, é atingido grosseiramente por alguém. Maior parece a dor do que o que sentimos ao nos ferir. É como se fosse dor sobre dor. É de nossa experiência o cuidado redobrado que tomamos para que ninguém, inadvertidamente, se aproxime, pois pode correr o risco de nos magoar. Até que tudo cicatrize e o tecido novamente se torne rijo e forte, andamos em estado de vigilância para não sermos magoados. Com razão.
Tudo isso nos leva a refletir sobre alguns aspectos das relações entre as pessoas, sobretudo no que se refere a formas mais íntimas de convivência. Há momentos em que as nossas fraquezas ficam expostas à “crítica construtiva” do outro. Infelizmente, muitas vezes, essa forma de alertar para a fragilidade ou mesmo para o erro, torna-se o caminho, não de uma pedagogia recuperadora, mas uma forma de magoar o ferimento que resiste à cicatrização tão esperada. Cada referência contundente ou, mesmo de maneira fortuita, é mágoa que fica pelo magoar a ferida que ainda não conseguimos curar.
Se aguçamos nossa sensibilidade, o outro aperfeiçoa a sua forma insensível de nos mostrar o erro, a ignorância ou a fraqueza que resulta do medo de romper com formas antigas de comportamento. É como se não devessem perder a mínima oportunidade de manter viva a lesão que um e outro gostariam de ver curada. São pessoas que, em nome do justo, do correto e do adequadamente pedagógico, não percebem que o outro se movimenta em círculos na tentativa de encontrar um caminho retilíneo. Magoar o mesmo ferimento repetidas vezes não faz parte de nenhum manual terapêutico eficaz.
Corrigir, produzindo no outro a dor de apenas ser confrontado com suas feridas, sem oferecer uma indicação de cura, é extravasar irritação travestida de rejeição.
Ensinar (ou ajudar), usando como instrumento pedagógico a rememoração reiterada das dificuldades, dos erros ou mesmo das limitações do outro, é muito mais acentuar dele a incapacidade do que auxiliá-lo na descoberta dos atributos que podem contribuir para a reconstrução da sua relação saudável com a vida.
Magoar a quem, sem o perceber, magoa a si mesmo, é estender o caminho da recuperação. Tratar os ferimentos com paciência, carinho e ternura é contribuir para a cura e ainda conquistar o doente. Ensinar usando o açoite verbal da reafirmação do erro do outro sem oferecer bondosa e humanamente a possibilidade de outra forma de comportamento é não se importar com a aprendizagem e a reconstrução, mas afirmar apenas um lado do processo pedagógico: apontar o problema é deixar reticências e interrogações sobre as alternativas de mudança.
Luiz Schettini Filho
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